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Um tratado sociológico sobre meias calças bicolores

Daí que eu tenho uma meia calça bicolor. Perna esquerda preta, perna direita branca. Por que? Porque acho legal, porque é bonita e, principalmente, POR QUE NÃO?

Abre parênteses.

(Por que não? é o nome de um fantasma engraçado que me acompanha desde sempre e que só percebeu que era estranho num dia em que foi parar na diretoria do colégio junto comigo. Basicamente, porque eu estava lendo embaixo de uma mesa da biblioteca e disse que só iria sair dali quando alguém me respondesse porque eu não deveria estar lá, enquanto não estivesse incomodando ou mordendo a canela de alguém. A resposta, depois de muito engasgo, foi “ora, porque não é um comportamento normal para um aluno”.

É aí que fico pensando em como se vai pouco longe quando você fica criando um comportamento que só vive em cima da sua mesa e não sai de lá. E nem olha embaixo porque tem medo, ou, muito pior, porque nem VÊ que a mesa tem uma parte de baixo. E aí fico pensando em como o Por que não? ajuda a gente a ser mais criativo e em como é difícil-porém-gostoso deixar ele correndo espontâneo no cérebro, abrindo espaço para que ele não nos deixe doido nem atropele nossos princípios e crenças no caminho.)

Meia-volta no assunto.

Taí. A verdade é que comprei essa meia calça com a sensação mais normal do mundo. E o que tem de tão diferente entre usar uma meia calça de duas cores ou uma de uma só cor? Será que não estamos acostumados a usar pares idênticos porque alguém, há sei lá quantos anos, definiu que pares de sapatos e meias devem ser idênticos, porque é mais fácil de produzir ou de ornar? Digo, não é nenhum mandamento moral escrito em tábuas de mármore, do tipo usareis meias idênticas e meias idênticas usareis, nem meio diferentes, nem meio iguais, mas idênticas, e sereis usadores de meias idênticas, e meias idênticas serão usadas sem que sejam diferentes para sempre amém.

Pelos céus, são só meias.

E só fui notar que essa meia calça não era considerada digna da sociedade quando usei-a pela primeira vez. Porque em qualquer lugar que se vai com ela, as pessoas OLHAM. E não contentes em olhar, elas APONTAM, RIEM, COMENTAM. Gente de bem, gente engravatada, em grupo, se sente na obrigação de comentar, e comenta alto, coisa boa e coisa ruim, como se meias-calças bicolores tapassem os ouvidos de quem as usasse. Acho engraçado como usar uma coisa simples com um viés diferente é suficiente para que as pessoas percam a noção das barreiras sociais e se sintam no direito de falar com você ou sobre você, assim, sem pudores. Na verdade eu acho isso delicioso, em certa instância. Porque é uma guerrilha ambulante. Sem precisar expor na bienal ou grafitar um prédio, com uma simples peça de roupa é possível tirar as pessoas de seus mundos de meias pálidas e despertá-las da rotina, nem que seja por um quarteirão. E eu, como palhaça e leonina, não só estou acostumada, como gosto de ter pessoas ao meu redor rindo de mim.

Opa, mas peraí.

E tem a segunda instância sobre as meias, e essa me fez matutar um pouco. Porque, ok, estamos falando de um par de meias-calças. Não é uma escolha assim tão pesada, qualquer coisa eu tiro e jogo fora, acabô a brincadeira. Mas ela representa uma coisa grande. Andando assim, de pernas cobertas, me senti exposta. Fiquei imaginando o que é você ser um gringo/um crossdresser/um punk tatuadíssimo/um louquinho/um religioso tradicional/uma prostituta/um maloqueiro no Cidade Jardim/uma patricinha na favela/a gordinha da escola/um insira sua própria peculiaridade particular aqui, vivendo de pernas bicolores todos os dias dessa vida.

Tem meia que a gente não usa, mas isso não devia nos dar o direito de apontar para uma perna bicolor e dar risada, sem  um olá amistoso ou ao menos uma pergunta de Por que?.

Será que é tudo medo de não saber responder um Por que não?

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